Desumano

Já fui humano. Não me pergunte quando o fio se rompeu, ou se foi um fio só. Talvez fosse um emaranhado, desfeito nó a nó pela mão invisível do tempo, ou pela corrosão lenta do que é viver. Hoje, sou o eco da poeira que me formou, uma memória que respira, sem o peso do pulmão. Lembro-me do petricor no chão quente, daquele hálito úmido que subia da terra sedenta e que se alojava em mim como um arrepio doce. E o gosto do sal, do primeiro beijo na boca ou da lágrima que se escorria, pesada, depois de um adeus. Havia uma orquestra de sentidos, um coro vibrante que agora se calou, ou se transformou em outra melodia, etérea, sem o corpo que a sentia. Ah, a complexidade da carne! Era um labirinto de vontades, anseios e uma fome insaciável por mais. Mais amor, mais riso, mais silêncio, mais ruído. Cada fibra pulsava uma história, cada célula guardava um segredo. Eram os dias de sol na pele, que ardia e bronzeava, e as noites de frio que se recolhia em abraços, buscando o calor da pele alheia. A...